O vazio americano e a urgência de um projeto brasileiro. Por Fernando Rocha

O conteúdo a seguir é de autoria do articulista e não expressa, obrigatoriamente, o posicionamento do Blog Marcus Aragão.
Na entrevista concedida em agosto de 2024 à CNN Brasil, o economista e imortal Eduardo Giannetti foi direto: os Estados Unidos não são modelo de sociedade. Ao contrário, tornam-se cada vez mais um espelho de uma civilização adoecida, onde o valor da pessoa se reduz ao sucesso econômico e onde o fracasso financeiro se traduz em desprezo social. Angus Deaton já chamava atenção para o fenômeno das mortes por desespero, e Giannetti reforça que esse é um traço sistêmico: a expectativa de vida nos EUA caiu antes da pandemia, despencou durante ela e segue em queda.
O assassinato do ativista Charlie Kirk insere-se nesse quadro maior. Não se trata apenas de um ato de violência política, mas da expressão mais aguda de uma sociedade marcada pelo vazio existencial. Quando o único valor social é o sucesso material, a vida humana perde densidade simbólica. O “outro” deixa de ser alguém com dignidade intrínseca e passa a ser um obstáculo, um competidor ou um inimigo. A comemoração pública do homicídio é um sintoma ainda mais grave: a normalização do ódio como linguagem política.
Giannetti lembra que a crise de identidade americana é também uma crise semântica: ser “mediano” na renda equivale, nos EUA, a ser um “loser”, um derrotado, embora tal posição coloque o cidadão entre os 5% mais ricos do mundo. A contradição é brutal e revela como a lógica do sucesso econômico absoluto se converte em medida única de valor humano. Isso corrói a autoestima coletiva e, em última instância, desumaniza as relações.
É nesse ponto que sua provocação ao Brasil ganha relevância: não devemos importar esse colonialismo mental que toma o padrão americano como régua universal. O desafio brasileiro é construir um projeto nacional de valores próprios, preservando o que Giannetti chama de “doce sentimento da existência”: a afetividade, as raízes afro-indígenas, o sentido de comunidade. Em vez de nos iludirmos com a miragem do “sonho americano”, urge definir qual é o sonho brasileiro — um que não sacrifique a dignidade humana em nome de uma corrida desenfreada por números.
A morte de Charlie Kirk, longe de ser apenas um episódio trágico da política americana, funciona como um alerta global. Sociedades que reduzem a vida ao êxito econômico criam desertos de sentido, nos quais florescem tanto o desespero silencioso quanto a violência aberta. Cabe ao Brasil aprender com esse colapso identitário e, ao mesmo tempo, reafirmar políticas públicas que consolidem nossos valores: educação de base de qualidade, segurança cidadã e uma economia a serviço da convivência e não do individualismo predatório.
Porque, ao contrário da lógica americana, o Brasil tem chance de mostrar ao mundo que civilização também se mede pelo afeto.
Fernando Rocha é Procurador da República.
Comentários (4)
Muito bom
Ótimo texto. Concordo com Giannetti
Ótima reflexão.
Sensacional, viva Fernando Rocha e você Aragão por compartilhar conosco.